Peitos e ovos da autora japonesa Mieko Kawakami foi o livro escolhido pelo nosso clube para o mês de julho.
Primeiro livro da autora publicado no Brasil, Peitos e ovos conta a história de Natsume Natsuko. O livro está dividido em duas partes: a primeira se passa no verão de 2008, e a segunda entre o verão de 2016 e o verão de 2019.
“Tive a ilusão de que estava havia vários anos num verão sem fim”, diz Natsuko. O ideograma “natsu” do seu nome significa “verão” e a perguntam constantemente se é um pseudônimo.
Na primeira parte, Natsu é uma mulher de 30 anos que 10 anos antes deixou a cidade de Osaka para viver em Tóquio. Tem poucos amigos e mantém um blog que quase ninguém lê. É escritora, mas sem nada publicado, e faz bicos para se sustentar.
O livro começa quando Natsu vai à estação de trem buscar sua irmã mais velha, Makiko, que está indo para Tóquio fazer uma cirurgia de mamoplastia de aumento dos seios. Makiko leva a sua filha adolescente, Midoriko, de quase 12 anos, que ela cria sozinha. Há seis meses, a filha parou de falar com ela, se comunicando apenas por escrito.
A narração de Natsu na primeira parte do livro é alternada com trechos do diário de Midoriko, em que ela escreve, entre outras coisas, sobre sua relação com a mãe e temas como óvulos e menstruação.
Por alguma razão tenho um corpo que sente fome por conta própria, que fica menstruado por conta própria, e estou presa dentro dele – essa é a sensação que tenho. E, uma vez que nascemos, está tudo decidido temos que continuar vivendo, comendo, ganhando dinheiro, e é muito duro viver dessa forma.
Abandonadas pelo pai quando crianças, Natsu e Makiko foram criadas pela mãe e a avó materna, Komi. Aos 13 anos, Natsu perde a mãe e, aos 15, a avó, ambas com câncer. Tendo nascido numa família sem condições financeiras para se manter, Natsu desde cedo ajudava a mãe e a irmã trabalhando num snack bar e numa fábrica durante as férias.
Com a exposição pública do corpo nas casas de banho do Japão, o complexo com o corpo e principalmente os seios é um dos temas da primeira parte do livro. Kawakami explora a relação entre procedimentos cirúrgicos estéticos e classe social. Muitas mulheres não podem pagar pelas cirurgias, ou as fazem com desconto com cirurgiões novatos ou em cidades pequenas com poucas opções, onde muitas cirurgias não dão certo. O mesmo acontece com homens trans das áreas mais pobres que trabalham como hosts num tipo de bar conhecido como onabe bar e não têm dinheiro para fazer a cirurgia de redesignação sexual, apenas vestindo-se como homens.
E Makiko? Por que ela queria tanto aumentar os seios com implantes e clarear os mamilos? Pensei a respeito, mas provavelmente ela não tinha nenhum motivo específico. As pessoas não precisavam de uma razão para buscar a beleza.
Em 2008, a primeira parte do que é hoje este romance de quase 500 páginas foi publicada no Japão com o título Chichi to ran (乳と卵), cuja tradução é ambígua já que o kanji 乳 (chichi) significa tanto “peitos” quanto “leite”. Quem não soubesse nada do livro e o comprasse achando que o título é na verdade “Leite e ovos” teria uma grande surpresa.
Uma década depois, após a experiência de ter se tornado mãe, a autora decidiu dar continuação à história de Natsu e relançou o livro com o título Natsu Monogatari (夏物語), ou “história de verão” numa tradução literal em português, incluindo uma segunda parte.
As duas partes parecem realmente dois livros diferentes. Na segunda parte, Natsu, agora com 38 anos, passa a pensar na possibilidade de ter tido um filho com o seu ex-namorado, Naruse, após receber um telefonema dele, e começa a pesquisar sobre o método de IAD (inseminação artificial com sêmen de doador). No Japão, o método é proibido para mulheres solteiras como Natsu e, para isso, ela precisa decidir entre se inscrever num banco de sêmen de um país estrangeiro ou encontrar algum desconhecido na internet que estivesse disposto a doar seu sêmen.
Quando alguém desejava ter um filho, o que queria de fato? “Quero ter um filho com a pessoa que amo” era uma explicação comum. Mas qual era a diferença entre “quero ter o filho do meu parceiro” e “quero ter meu filho”? Para começar, todas as pessoas que tinham filho sabiam de antemão o significado de ter filhos? Sabiam mais do que eu sabia então? Todas elas tinham uma espécie de qualificação que eu não possuía?
Sem o apoio da irmã, da sua editora e de outras partes interessadas, ou seja, pessoas que nasceram por meio do método de IAD, Natsu se sente ainda mais frustrada e solitária.
As descrições belíssimas de sons, aromas e paisagens na escrita de Kawakami, preservadas na tradução rica e fluida de Eunice Suenaga para o português, nos transportam para os dias quentes de verão em Tóquio, como o “[...] ciciar intenso das cigarras que pareciam tentar colorir todas as coisas com a intensidade do seu som”.
Por tentar abordar muitos temas, o livro pode se perder em alguns momentos, mas é uma obra importante tanto dentro do Japão, tendo sido considerado “desagradável e intolerável” pelo governador de Tóquio na época do lançamento por abordar temas como imagem corporal das mulheres, quanto fora do país, em países acostumados com a literatura japonesa tradicional.
Damos-lhe as boas-vindas à primeira edição da newsletter do Clube do Livro Margem! Aqui pretendemos compartilhar resenhas dos livros que lemos para o clube, além de outros textos que requerem uma leitura mais lenta do que o que a gente escreve no Instagram.
Esperamos que tenha gostado desta primeira edição e que possamos nos ver pessoalmente num dos nossos próximos encontros. Este domingo, dia 30 de julho de 2023, acontece o encontro do livro Peitos e ovos em Den Haag. Se ainda não se inscreveu, entre no link do evento para reservar um lugar gratuitamente e encontrar mais informações sobre o encontro.
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🗓️ 27 de agosto de 2023
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SETEMBRO
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🗓️ 24 de setembro de 2023
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Um abraço e até a próxima,
Maíra & Nara